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23.12.11

Contagem Regressiva

Voltando para casa após uma longa semana. O cansaço estampa da mesma forma todos os rostos no ônibus. “Finalmente chegou sexta”, “Sexta, sua linda”, “Chega logo sexta pelo amor de Deus”, são coisas comuns que vemos em redes sociais.

É estranho: vivemos para viver três dias. Não, essa frase não está errada. Deixe-me explicar: passa-se quatro dias desejando os outros três (dois, para as pessoas que não aproveitam o domingo e ficam na frente de uma TV o dia todo). E nesses três dias, faz-se tudo que não se fez nos outros: bebemos, gastamos, dormimos e assistimos a uma tela em excesso. Mas isso não significa que vivemos em excesso. Nem moderadamente, creio eu.

Vejamos: uma pessoa que trabalhe oito horas por dia (especialmente em algo que não gosta, caso de grande maioria), tem mais uma hora de almoço e fique duas horas no ônibus trabalha de fato onze horas por dia (acredito que seis horas seriam suficientes para o trabalho, mas o capitalismo...enfim). Levando em conta que essa pessoa consiga dormir seis horas (para muitos considerado algo utópico), são dezessete horas a menos no dia. Sobram, supostamente, sete horas para o resto. Mas as pessoas estão tão desgastadas mentalmente que preferem simplesmente relaxar na frente da TV ou do PC. Assim fica fácil manipular as pessoas, você as desgasta e passa o que quiser na programação para manter os carneirinhos dormentes.

E como se não bastasse não fazer nada em frente a uma tela, as outras opções se tornam insuportáveis: ler? Dá trabalho e muitos acham chato (¬¬). Ligar para um amigo? Por quê, se existe o e-mail e com ele não ouço problemas? Sair com amigos? Durante a semana? Vai fazer cair minha produtividade. Prestar atenção nas pessoas que moram comigo? Mas elas estão sempre ali, mas esse joguinho, essa notícia, esse programa...

E no fim de semana, fazemos isso? Sim. Lemos flyers de baladas, ligamos para chamar pessoas para ir conosco, saímos com amigos e prestamos atenção nas pessoas de casa para que elas não percebam algo que fizemos.

Tem algo errado aí. Nos alienamos o dia todo, esgotamos nossas capacidades durante a semana para levá-las ainda mais ao limite nos finais de semana. “Porque é divertido”. Por que não colocar mais diversão nos outros dias então? Simples. Porque vivemos para o amanhã. E somente para ele. Procrastinar é o lema.

E, veja, a sexta chegou.

22.12.11

Pedaços



Ele sabia que aquilo era errado, mas não pensou em voltar atrás. A casa na colina parecia abandonada e seria difícil alguém lá habitar. Mas, como manda o clichê, ela era, e por um ser fascinante.

Adentrou por uma fenda entre o chão e o portão, esgueirando-se para uma janela que ele deixara aberta na noite anterior quando a casa recepcionara uma festa, como sempre. Todos eram convidados, como sempre. E o anfitrião ficava um pouco apagado, como sempre.

A casa estava escura e vazia. Ou assim ele esperava. Silencioso, entrou pela janela no corredor. Sabia que não haveria perigo, pois apesar de morar com outros na casa, elas nunca estavam lá. ELE sempre falava isso. Mas ELE falava muita coisa.

Apesar de sempre ficar no canto em suas próprias festas, falava com todos e invariavelmente chamava atenção para seus comentários desconexos e facetas exageradas.

Subiu as escadas, sabia que o que queria estava no sótão. No caminho, encontrou um artefato curioso: uma ampulheta. Era curioso porque ELE dizia ter medo daquele objeto simplesmente porque representava a passagem do tempo e, portanto, a morte. Apesar disso, não tinha nada contra relógios.

Na ponta dos pés, subiu a escada, lembrando que ELE uma vez dissera que tinha algo no sótão que era único e, por isso mesmo, não podia mostrar a ninguém ou seria cobiçado. Chamava-o de “segredo”. A curiosidade o levou até ali. Achava que a esquisitice dELE revolveria em torno do tal “algo”. 

O anfitrião sempre fora esquisito: tinha manias estranhas: usava coisas não-usuais como acessórios (um telefone como fone de ouvido); dizia ser incapaz de sentir cheiros, mas uma vez deixou escapar que amava o cheiro de cookies; utilizava de drama para as coisas mais pequenas (fingia um medo colossal de joaninhas). Acreditava que a vida era uma fantasia sem fim, ora agindo como se pertencesse à terra média, ora à máfia. Todos aspectos devidamente copiados ou referentes à alguém ou à alguma coisa.   

O silêncio em volta tornava as coisas um pouco assustadoras. Normalmente, quando havia festas, o barulho de conversas e música era intenso, principalmente quando havia jogos para o entretenimento. Agora o mínimo esforço para se locomover era graciosamente abafado pelo carpete, mas ainda assim fazia a madeira ranger. Mas nenhum som podia abafar o vazio daquela casa. 

Chegou finalmente à porta do sótão a testou. Não estava trancada, por isso adentrou, ainda cuidadoso. A sala estava escura e empoeirada, com alguns móveis cobertos por panos brancos e gastos. A lua banhava a sala, sendo sua única fonte de luz, e era refletida por algo grande e semi-coberto, em um espaço mais aberto, perto da janela. Reparou que o chão naquele espaço não era tão sujo.

Aproximou-se e prendeu o fôlego enquanto retirava o tecido que cobria o objeto, rápido mas cauteloso. Era um espelho de vidro escuro, com moldura dourada e ornamentado com arabescos prateados. Era maior que um homem, e belíssimo. Havia pequenas inscrições no vidro, mas não conseguia ler. 

Chegou mais perto e estacou. Ouviu um barulho ali, alto o suficiente para não ser um rato nem fruto de sua imaginação. Mas não podia ter certeza, nem podia desistir agora. Virou-se afobado para ler, mas ainda não compreendia. Ouviu o ranger da madeira perto de si. Eram passos, sem dúvida, mas não pareciam tão humanos. Não se atreveu a olhar para trás. Leu finalmente a inscrição:

Você – Pedaços -- Eu

Confuso, reparou em uma sombra no canto do espelho que não estava lá. Com a barriga dando voltas, virou-se assustado, pronto para se defender. Mas não havia uma pessoa lá. Só um manequim, cheio de conhecidos retalhos. Era ELE.